Ontem à noite, quando chegava de mais um "pós-aula" na casa de um amigo, desci do táxi em frente a minha casa. Ao colocar o pé pra fora do carro, senti a diferença de temperatura. O frio estava em seu normal, rachando lábios, batendo queixos e empedrando pés.
Coloquei as mãos nos bolsos do meu casaco comprado em Gramado, lã quente e confortável, perfeito para um dia de frio. Meus pés eram abrigados por uma bota de couro e meu pescoço protegido por um aquecedor cachecol listrado. Eu estava bem agasalhada, muito bem agasalhada.
Enquanto caminhava em direção ao portão de meu prédio, conversei alto comigo mesma: "Mas que friaca!". Foi instintivo, mal percebi o que dizia.
Revirei minha bolsa em busca da chave e pude ouvir uma voz rouca e baixinha ao meu lado: "Friaca, mas tá de bota, né, tia!".
Instantaneamente senti um aperto no coração. Olhei para baixo, um pouco a minha direita, e avistei uma senhora enrolada em algumas cobertas sentada no chão.
Me senti um lixo de ser humano, tive vontade de chorar. Fiquei sem reação, abri o portão e subi para meu, pequeno, mas aconchegante apartamento.
No elevador, não tirei meu pensamento sequer um minuto daquela mulher. Eu não a vi. E por que não a vi? Estava muito preocupada com o que comeria quando chegasse em casa. Muito preocupada em ligar de imediato o ar condicionado em meu quarto. Eu não dormiria em paz.
Já em casa, entrei na cozinha logo de cara. Peguei alguns pães que havia comprado na tarde, preenchi-os com margarina, queijo e presunto. Coloquei um pouco de suco de laranja em uma garrafinha de água vazia e fui ao quarto procurar por algo mais. Em meu armário, encontrei dezenas de coisas que não uso e tenho pena de me desfazer. Peguei um tênis, um par de meias e um casaco de lã colorido que nem mesmo sabia que estava ali.
Em seguida, tomei o elevador novamente e fui ao encontro da pobre senhora. No momento em que me avistou, seu olhar foi instantâneo em direção aos dois pães em minhas mãos. Pude sentir seu coração pulsar mais rápido e seu sorriso inundar o rosto triste e judiado pelo tempo.
"Muito obrigada, minha filha! Muito obrigada! Eu não sei o que dizer, apenas obrigada!". Nesse momento senti a primeira lágrima descendo meu rosto. Apenas esbocei um sorriso torto e entreguei a ela o que havia buscado.
Mas sabem o que eu queria mesmo dizer pra vocês? Não me senti aliviada no elevador. Nem poderia. Nem deveria. Não fiz mais do que minha obrigação. Não fiz mais do que fazer jus a minha espécie, "ser humano".
Eu não vim aqui contar pra vocês sobre meu ato bonito e solidário. Eu vim aqui pra dizer que somos todos um bando de egoístas. Um bando de cegos.
Enquanto desfilava pela rua com meu casaco de lã quente e confortável, sequer vi a realidade ao meu lado. Sequer notei o quanto tenho e o quanto não dou valor.
Lembrei-me das vezes em que postei fotos enrolada em mantas com legendas e hashtags referentes ao frio que estamos enfrentando. Dei-me por conta de que, aquela senhora ao pé do meu prédio, é apenas uma entre tantos outros na mesma situação.
E sabem o que é mais triste nisso tudo? Hoje, quando acordei para ir à padaria, ela ainda estava ali. E eu? Ah, eu atravessei a rua, vestindo meu casaco de lã quente e confortável, e comprei cinco pãezinhos para tomar café da manhã.